sábado, 12 de junho de 2010

The L*ve

O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.

O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas. O amor comeu metros e metros de gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos.

O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas, meus raios X. Comeu meus testes mentais, meus exames de urina.

O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu em meus livros de prosa as citações em verso. Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.

Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso: pente, navalha, escovas, tesouras de unhas, canivete. Faminto ainda, o amor devorou o uso de meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada no banheiro, o aquecedor de água de fogo-morto mas que parecia uma usina.

O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.

O amor voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.

O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas de automóvel.

O amor comeu meu Estado e minha cidade. Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré. Comeu os mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas chaminés. Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de maresia. Comeu até essas coisas de que eu desesperava por não saber falar delas em verso.



João Cabral de Melo Neto, em fragmento de "Os três mal-amados", 1943.

Desenrolando um sexo


Com aquela cara de homem fingindo estar interessado no papo de uma mulher apenas porque está com vontade de comê-la, com aquela cara de mulher costurando e bordando pensamentos apenas porque está a fim de ser comida por ele, cheguei, caprichei, relaxei, lembrei tudo o que tinha aprendido em Kant e Hegel, repassei toda a teoria dos quanta, a morfologia dos contos de magia de Propp, o vôo do 14-bis, cheguei e não perdoei:

-- Tem fogo?

-- Betelgeuse, que vergonha! Você podia estar mais brilhante hoje. Mas como é que você poderia com todos aqueles proctores enfristulando você? Tenho andado tão triste desde que os churros mertriaram toda a tua tenoctília...

Ela me olhou com desprezo:

-- Os warhoos tomaram o poder em Achernar, e você não fez nada?

E me atacando começou a chutar minhas canelas, que não são de ferro, como todo mundo pode imaginar.

-- Pare com isso -- falei. -- Os warhoos caíram na nossa armadilha.

Ela parou. Afastou-se. E olhou para mim.

-- A atmosfera de Achernar é fatal para os warhoos. Eles só têm dois mil anos-luz de vida -- eu gritei.

-- Mas os strelitz vão miricondar todos os prosonômios de Khandar!

Quanto mais ela gritava, jurcs, yaraconds, nelmeiam, osks, mais longe ia ficando, até que eu a via como quem vê alguém, um ponto muito lá longe no começo de um infinito corredor, alguém aí?



**montagem a partir de Catatau, de Paulo Leminski.

Sobre Bukowski



O velho safado- que me aproximou e trouxe o homem com quem vivo e muito amo, pela semelhança que me ocorre nas palavras e em algo a mais, embora o meu estado emocional se abala me levando a uma ligeira palpitação, mãos tremulas e a face imensamente ruborizada por conta de um certo ciúmes até mesmo em ler os rabiscos ( o que não é novidade nem prá ex do meu esposito-amado e nem prá ninguém), mas enfim. Vamos ao que de fato interessa. A verdade é que já odiei e já fiz as pazes com ele, o cara me atraiu pela sua não tapeação literal, ele ele escreve qualquer merda e não esconde isso. Gosto dele antes de abrir uma lata de cerveja, antes de dormir, gosto do que ele diz, da sua desesperança, da sua falta de saco prá poetas, pra gente em geral. velhosafado-que me encanta com seu jeito único-verdadeiro-sem-rodeios-original. Já disseram: Não existe literatura ruim, você é que bebeu pouco. Álcool é vício de escritor. Alivia dores, entorpece a realidade. Há prazer no baixo, no sujo, há uma tristeza na embriagues. Essas palavras que escrevo me protegem da completa loucura, ou melhor digo a loucura que me protege dessa monótona normalidade .
Pensamentos bipolares mal regularizados.
Que tempo difícil: ter a vontade de viver, mas não a habilidade.


quanta doidera =)


Face




"a otro parecerá siempre otra cosa"



Dom Quixote
- Miguel de Cervantes

(...)


O que há em mim é sobretudo cansaço -- Não disto nem daquilo, Nem sequer de tudo ou de nada: Cansaço assim mesmo, ele mesmo, Cansaço. A sutileza das sensações inúteis, As paixões violentas por coisa nenhuma, Os amores intensos por o suposto em alguém. Essas coisas todas -- Essas e o que falta nelas eternamente --; Tudo isso faz um cansaço, Este cansaço, Cansaço. Há sem dúvida quem ame o infinito, Há sem dúvida quem deseje o impossível, Há sem dúvida quem não queira nada -- Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles: Porque eu amo infinitamente o finito, Porque eu desejo impossivelmente o possível, Porque eu quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser, Ou até se não puder ser... E o resultado? Para eles a vida vivida ou sonhada, Para eles o sonho sonhado ou vivido, Para eles a média entre tudo e nada, isto é, isto... Para mim só um grande, um profundo, E, ah com que felicidade infecundo, cansaço, Um supremíssimo cansaço, Íssimo, íssimo, íssimo, Cansaço...
Álvaro de Campos, 1934.

terça-feira, 8 de junho de 2010

Família






E ao acordar
E ao me ver
o sorriso dela,
o que me fortalece
o que me eleva, o que me faz acreditar num novo dia
te amo minha Flor.

sábado, 12 de junho de 2010

The L*ve

O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.

O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas. O amor comeu metros e metros de gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos.

O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas, meus raios X. Comeu meus testes mentais, meus exames de urina.

O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu em meus livros de prosa as citações em verso. Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.

Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso: pente, navalha, escovas, tesouras de unhas, canivete. Faminto ainda, o amor devorou o uso de meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada no banheiro, o aquecedor de água de fogo-morto mas que parecia uma usina.

O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.

O amor voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.

O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas de automóvel.

O amor comeu meu Estado e minha cidade. Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré. Comeu os mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas chaminés. Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de maresia. Comeu até essas coisas de que eu desesperava por não saber falar delas em verso.



João Cabral de Melo Neto, em fragmento de "Os três mal-amados", 1943.

Desenrolando um sexo


Com aquela cara de homem fingindo estar interessado no papo de uma mulher apenas porque está com vontade de comê-la, com aquela cara de mulher costurando e bordando pensamentos apenas porque está a fim de ser comida por ele, cheguei, caprichei, relaxei, lembrei tudo o que tinha aprendido em Kant e Hegel, repassei toda a teoria dos quanta, a morfologia dos contos de magia de Propp, o vôo do 14-bis, cheguei e não perdoei:

-- Tem fogo?

-- Betelgeuse, que vergonha! Você podia estar mais brilhante hoje. Mas como é que você poderia com todos aqueles proctores enfristulando você? Tenho andado tão triste desde que os churros mertriaram toda a tua tenoctília...

Ela me olhou com desprezo:

-- Os warhoos tomaram o poder em Achernar, e você não fez nada?

E me atacando começou a chutar minhas canelas, que não são de ferro, como todo mundo pode imaginar.

-- Pare com isso -- falei. -- Os warhoos caíram na nossa armadilha.

Ela parou. Afastou-se. E olhou para mim.

-- A atmosfera de Achernar é fatal para os warhoos. Eles só têm dois mil anos-luz de vida -- eu gritei.

-- Mas os strelitz vão miricondar todos os prosonômios de Khandar!

Quanto mais ela gritava, jurcs, yaraconds, nelmeiam, osks, mais longe ia ficando, até que eu a via como quem vê alguém, um ponto muito lá longe no começo de um infinito corredor, alguém aí?



**montagem a partir de Catatau, de Paulo Leminski.

Sobre Bukowski



O velho safado- que me aproximou e trouxe o homem com quem vivo e muito amo, pela semelhança que me ocorre nas palavras e em algo a mais, embora o meu estado emocional se abala me levando a uma ligeira palpitação, mãos tremulas e a face imensamente ruborizada por conta de um certo ciúmes até mesmo em ler os rabiscos ( o que não é novidade nem prá ex do meu esposito-amado e nem prá ninguém), mas enfim. Vamos ao que de fato interessa. A verdade é que já odiei e já fiz as pazes com ele, o cara me atraiu pela sua não tapeação literal, ele ele escreve qualquer merda e não esconde isso. Gosto dele antes de abrir uma lata de cerveja, antes de dormir, gosto do que ele diz, da sua desesperança, da sua falta de saco prá poetas, pra gente em geral. velhosafado-que me encanta com seu jeito único-verdadeiro-sem-rodeios-original. Já disseram: Não existe literatura ruim, você é que bebeu pouco. Álcool é vício de escritor. Alivia dores, entorpece a realidade. Há prazer no baixo, no sujo, há uma tristeza na embriagues. Essas palavras que escrevo me protegem da completa loucura, ou melhor digo a loucura que me protege dessa monótona normalidade .
Pensamentos bipolares mal regularizados.
Que tempo difícil: ter a vontade de viver, mas não a habilidade.


quanta doidera =)


Face




"a otro parecerá siempre otra cosa"



Dom Quixote
- Miguel de Cervantes

(...)


O que há em mim é sobretudo cansaço -- Não disto nem daquilo, Nem sequer de tudo ou de nada: Cansaço assim mesmo, ele mesmo, Cansaço. A sutileza das sensações inúteis, As paixões violentas por coisa nenhuma, Os amores intensos por o suposto em alguém. Essas coisas todas -- Essas e o que falta nelas eternamente --; Tudo isso faz um cansaço, Este cansaço, Cansaço. Há sem dúvida quem ame o infinito, Há sem dúvida quem deseje o impossível, Há sem dúvida quem não queira nada -- Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles: Porque eu amo infinitamente o finito, Porque eu desejo impossivelmente o possível, Porque eu quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser, Ou até se não puder ser... E o resultado? Para eles a vida vivida ou sonhada, Para eles o sonho sonhado ou vivido, Para eles a média entre tudo e nada, isto é, isto... Para mim só um grande, um profundo, E, ah com que felicidade infecundo, cansaço, Um supremíssimo cansaço, Íssimo, íssimo, íssimo, Cansaço...
Álvaro de Campos, 1934.

terça-feira, 8 de junho de 2010

Família






E ao acordar
E ao me ver
o sorriso dela,
o que me fortalece
o que me eleva, o que me faz acreditar num novo dia
te amo minha Flor.